Ontem, quase véspera do dia oito de março, aconcheguei-me entre meus travesseiros com um pensamento em mente: o que irei escrever sobre o ‘Dia Internacional da Mulher’?
Realmente, eu não sabia sobre o que falar. A famosa emancipação feminina, o papel da mulher na sociedade contemporânea, a igualdade de sexos, a pílula anticoncepcional... são tantos assuntos, mas todos tão desgastados e dessecados, tanto pela mídia quanto pelos prodigiosos admiradores do sexo feminino...sim, eu estava sem assunto. Não queria falar sobre o óbvio. Então, pedi às “instâncias superiores”, de onde jugo receber os temas de meus textos, um assunto. É, esse era meu pedido para o dia da mulher. Eu queria um assunto.
Quando em meu horário de almoço, corrido como o da maioria dos cidadãos que trabalham duro e com honestidade, sem almoçar, vou direto ao banco fazer uns depósitos urgentes. Na falta de lugar para estacionar no movimentado centro da cidade, tenho a péssima idéia de parar meu carro no estacionamento do Fórum da Comarca de Ipatinga, onde haviam inúmeras vagas. Não sei o que me deu. Não costumo nem furar sinal vermelho de madrugada, sempre acho que o cidadão de bem tem que dar exemplo, ser exemplo. Mas, enfim. Cometi um erro. Achei que o depósito era rapidinho, minha folha de ponto não iria esperar por um atraso.
Ao retornar do banco, deparei-me com um Uno cinza com adesivos que diziam: ‘A serviço do Fórum’ travando a minha saída do estacionamento. Logo pensei: eu mereci...quem desobedece a lei, paga. Fui em direção ao guarda que estava na sombra de uma robusta árvore junto a um senhor que, me parecia, coordenava o estacionamento.
- O Gol preto é meu.
Disse certa de que seria penalizada. Então, o guarda respondeu com muita educação e cordialidade: “Terei que notifica-la. Esse estacionamento é só para funcionários do Fórum.”
– Perfeitamente. Estou errada. Pode fazer a notificação.
No meu ponto de vista, de uma pessoa comum e sem a suficiente ciência do Direito, entendi que o preço pelo erro que cometi seria pago junto à multa que receberia. Assim, pedi aos funcionários do Fórum que ali estavam devido ao congestionamento do estacionamento que pedissem ao usuário do carro a serviço do poder judiciário que o tirasse, pois impedia a minha passagem.
Iam meninos, vinha o guarda, ia o senhor responsável pelo estacionamento, vinha mais uma porção de funcionários (todos homens) e nada era resolvido. Mas todos me trataram com extrema educação e até alguma ternura. “Socorro, a responsável pela administração do Fórum, não iria entregar a chave do carro para retirá-lo”, diziam todos. “A senhorita terá que aguarda-la terminar uma reunião com o Juiz”, repetiam todos.
Fui até a sala da Administração. A moça, que parecia ser sua secretária, até tentou mais de uma vez conseguir a chave com a senhora responsável, a meu pedido, mas não teve sucesso e nem me deu maiores explicações.
E eu aguardando. Mais de uma hora já havia se passado. Uma outra pessoa também estacionara o carro na mesma situação que eu. Para melhorar o congestionamento, o senhor que respondia pelo local pediu a uma outra funcionária que reposicionasse seu veículo. Eu, debaixo da árvore robusta, apenas a vi gritando com o senhor com muita grosseria e falta de educação: “Pois fique sabendo, se acontecer na minha vaga você deixa a pessoa aqui até eu ir embora!”.
Foi quando o guarda veio de dentro do prédio que abriga a justiça e disse-me. “A Socorro já chegou. Vá lá e peça a ela que retire o carro”. Assim o fiz.
Agora começa a nossa história, Socorro.
Aproximei-me da senhora e percebi sua postura diante da minha presença. Olhando-me por cima, estava a mulher que parecia ter seus cinqüenta anos. Olhos claros, cabelos loiros, voz firme.
Então disse a ela o quanto eu estava errada. Que a notificação já havia sido feita e que me desculpasse o transtorno, mas eu estava em horário de trabalho e precisava ir. Foi quando, pela primeira vez em meus vinte e sete anos, vi, materializado em minha frente, o que era o termo “fazer justiça com as próprias mãos”.
“Pode esperar. Não vou tirar o carro agora. É bom para você ter um tempo para pensar sobre o erro que cometeu”, disse-me em tom áspero. Quando reafirmei que já estava atrasada no trabalho e que não poderia esperar. Ela manteve-se firme.
Sai de sua sala indignada. Uma funcionária do Fórum da Comarca de Ipatinga, mesmo que não juíza, não advogada e nem promotora, carrega em sua vida o dever de dar exemplo. O dever de saber que todos podem errar e têm o direito irrevogável de pagar pelos seus erros nos termos da lei.
A mesma lei que reza sobre a minha conduta, a do morador do barraco no ponto mais alto da favela e a da administradora do Fórum. A lei que não permite que cidadão algum seja julgado por qualquer pessoa que não seja um magistrado. Um juiz que se preparou anos a fio para a tarefa tão difícil de qualificar e estabelecer diretrizes às vidas das pessoas. Juizes dão sentença. Ainda assim, após analisar e estudar a vida, o erro e os acertos do indivíduo. Pessoas comuns não estabelecem “castigos”. Hoje, nem as professoras do primário colocam mais os alunos com o nariz no quadro negro para “pensarem sobre seus erros”.
Gostaria de falar aqui que exemplos assim, como a Socorro, instalada numa das salas de ambiente forense, fazem o país no qual vivemos. Cada um critique sob seu ponto de vista. Não vou enveredar, aqui, por esses caminhos.
Socorro não me fez esperar. Olhei-a no olho. Disse a ela que ela não poderia prender a mim e a meu carro ali, pois sabia dos meus direitos (e quem não sabe? E quem não tem instrução? Iria ficar ali ao bel prazer da punição de Socorro?). Logo que deixei sua sala ela mandou um de seus funcionários retirar o carro que me impedia seguir meu caminho.
Esse é um exemplo do que, na verdade, quero falar aqui hoje. Mulheres de hoje. Mulheres independentes. Mulheres como a Socorro.
Todos os homens trataram-me com educação. Todas as mulheres da história que conto foram deselegantes, ríspidas e grosseiras com seus interlocutores. O que está acontecendo com nós? A mulher é a detentora da doçura, do carisma, da intuição. A mulher tem em seus genes, naturalmente, o lado meigo, o colo quente que abriga, a mão protetora que afaga. A mulher tem, através dos hormônios que correm em seu corpo, a divina sabedoria da leveza e da ternura, o poder de trazer harmonia, a virtude de organizar com amor. Não que os homens não tenham essas qualidades e não devam buscá-las. Mas homens são seres cheios de testosterona, são feitos de músculo, de força.
Tudo bem. Já queimamos os sutiãs em praça pública. Já radicalizamos o suficiente. Já conseguimos alcançar autonomia. Penso que agora é hora de revermos o que toda essa conquista tem feito com nós...e de nós. É incoerente falarmos que a mulher é igual ao homem. Não, não é. Somos diferentes fisicamente, emocionalmente. Dedicamos parte da nossa vida a gerarmos e cuidarmos de um, dois – seja lá quantos forem – filhos. Amamentá-los. Temos menopausa e, antes disso, nossos hormônios são tão constantes como a lua e suas fases.
Não estou propondo respostas para a nossa situação atual. Não as tenho. Nem sou retrógrada a ponto de imaginar vivermos novamente como nossas avós. O que me preocupa, no fundo da alma, é onde vamos parar com mulheres tão ausentes, tão estressadas, tão abarrotadas de trabalho e responsabilidades sociais. Será que estamos dando conta? Acho que não. Estivéssemos, ainda teríamos a ternura no olhar ou, sem pedir muito, respeito pelo outro que é, uma das inúmeras formas de manifestar amor.
4 comentários:
Parabéns pelo seu blog. É difícil encontrar blog's assim, inteligentes e de bom gosto!
amiga, seu texto veio para reforçar a palestra da Leila Ferreira, que te falei...também fiz um, fla de coisas diferentes, mas no fundo parecidas...."apesar de usar salto 12, eu tenho medo de altura"...
amo,
Evleyne.
Você escreve como extremo bom gosto e elegância...eloqüência... sapiência...
Me surpreendeu, me vez viajar ao estacionamento e vivenciar a situação . Desfecho, perfeito... e comungo com suas idéias acerca do que está acontecendo atualmente com a mulher. Vocês são seres supremos do universo... não devem nunca perder a essência do ser mulher em sua totalidade.
Ainda bem que você é sensível.
Fiquei mais seu fã ainda(e olha que nem terminei de ler o restante ainda rs...)
Beijos
Anderson Nazareth
Parabéns!
Excelente descrição da situação vivenciada. Continue assim... escrevendo maravilhosamente bem, para que possamos aprender algo bom nesta nossa sociedade.
Bjos,
Raquel
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